Durante anos pensámos que Marte era um mundo elétrico morto. Relâmpagos só existiam na Terra, em Júpiter, Saturno e, talvez, Vénus. A atmosfera marciana era considerada demasiado fina e seca para sustentar descargas. Esquecemos um detalhe: poeira. Toneladas e toneladas de poeira finíssima que o vento levanta todos os dias. E essa poeira acabou de revelar um segredo brutal.
O som que ninguém esperava ouvir
O microfone montado no mastro do rover ativo desde 2021 nunca foi projetado para caçar trovoadas. O objetivo era simples: gravar o vento, o ranger das rodas, o impacto de pequenas pedras. Mas durante quase quatro anos terrestres ele captou 55 estalos secos, curtos e inconfundíveis. Eram descargas elétricas puras na atmosfera rarefeita. Cinquenta e cinco vezes o céu marciano, sem uma única nuvem de água, fez “crack”.
Como nascem relâmpagos num planeta sem chuva
Tudo começa com atrito. Quando o vento sopra forte, levanta nuvens de partículas de pó com menos de 20 micrómetros. Essas partículas chocam bilhões de vezes por segundo, trocam eletrões e criam campos elétricos gigantes. Na Terra isso aconteceria dentro de nuvens carregadas de gelo. Em Marte acontece dentro de redemoinhos de poeira ou nas grandes tempestades que cobrem o planeta inteiro. Quando o campo fica intenso demais para a atmosfera aguentar, dá-se a descarga. É o mesmo estalo que sentes quando tiras um casaco de lã no inverno, mas amplificado até níveis planetários.
A prova veio dos diabos de poeira
Dezasseis eventos coincidiram exatamente com a passagem do rover por dois grandes redemoinhos. Já tínhamos ouvido o rugido desses vórtices, mas agora sabemos que muitos deles são verdadeiras colunas de trovoadas secas. Os restantes 39 estalos surgiram em dias de vento violento, quando o céu fica cor de laranja e o ar se transforma num mar de poeira suspensa.
Por que esta descoberta muda tudo na busca por vida
Cada relâmpago produz moléculas oxidantes extremamente agressivas. Essas moléculas destroem compostos orgânicos em segundos. Ou seja, o próprio planeta pode estar a “esterilizar” a superfície com descargas invisíveis. Isso explica por que é tão difícil encontrar bioassinaturas: elas podem ser queimadas antes de conseguirmos detetá-las. A janela para encontrar vestígios de vida passada fica ainda mais estreita.
Risco real para quem lá for
A poeira carregada eletricamente gruda com força brutal em fatos espaciais, viseiras, painéis solares. Um único relâmpago forte pode fritar eletrónica delicada ou dar choque perigoso a astronautas. Futuras bases vão precisar de proteções específicas contra descargas atmosféricas – algo que ninguém tinha na lista de preocupações até agora.
O que falta descobrir
O microfone atual é limitado: capta som, mas não mede intensidade, direção ou altura. Os cientistas já planeiam instrumentos dedicados: detetores de ondas de rádio, sensores de campo elétrico, câmaras ultrarrápidas. Só assim vamos saber se os relâmpagos são raros ou diários, se são mais fortes no verão marciano, se tocam o solo ou ficam suspensos a poucos metros.
Um Marte muito mais ativo do que imaginávamos
O planeta vermelho já não é o deserto calmo e silencioso dos livros antigos. Tem ventos que aceleram mais rápido do que se pensava, tempestades que engolem o globo inteiro e agora relâmpagos escondidos dentro dos redemoinhos de poeira. Cada nova descoberta torna a pergunta “houve vida em Marte?” mais difícil, mais urgente e infinitamente mais fascinante.
Da próxima vez que vires um vídeo de um diabo de poeira a dançar no horizonte marciano, lembra-te: lá dentro pode estar a trovejar em silêncio. E esse trovão pode ser a razão por que ainda não encontramos o que procuramos – ou a pista de que temos de procurar muito mais rápido.